Vidas Negras Importam

Vidas Negras Importam

 

        O Jornal A Matéria, como porta-voz e provedor de informação e posicionamento, não deve ficar calado quando o assunto se trata de racismo e fascismo. Sendo assim, decidimos nos posicionar frente aos movimentos que vêm ocorrendo no mundo, de forma a repudiar qualquer ato que corrobore com tais acontecimentos. Para isto, trazemos um texto sobre o racismo estrutural, com suas origens, exemplos da sociedade (sobretudo brasileira) e formas de combatê-lo, sempre com a ressalva de não ter o intuito de falar POR ninguém, apenas trazer informação e um posicionamento claro contra qualquer tipo de ato racista e fascista. Vamos lá!

        Desde pequenos, muito ouvimos falar sobre preconceito, discriminação e racismo, este último associado aos dois conceitos anteriores - mas sabemos, de fato, dizer como essas definições operam?
A pesquisadora Grada Kilomba (2009) define a discriminação a partir da percepção da diferença: quem não se assemelha a um grupo de pessoas é apontado, identificado, ou seja, discriminado.  O preconceito, à sua vez, somando à discriminação, instala uma hierarquia em que aquele que é diferente é inferiorizado, desonrado ou estigmatizado (a pessoa negra é vista pela branca como exótica, sexualizada, animalizada, por exemplo). 
        O racismo, operando por meio da discriminação e do preconceito, não se resume, no entanto, aos conceitos anteriores, por uma questão simples e demasiada importante: o racismo é estruturado e institucionalizado pelas relações de poder.


           Mas como assim?  O que isso, na prática, significa?
        Ora, quando os interesses das(os) negras(os) não estão nas agendas políticas, quando também não estão presentes nas salas do ensino superior, quando as negras (os) estão menos seguras que as(os) brancas(os), seja lá onde vivem, e quando não possuem o mesmo acesso que aqueles a serviços públicos básicos, como saneamento básico e segurança: é possível dizer que essa diferença racializada é decorrente da seguinte ação - há uma supremacia branca que governou e governa sobretudo em função de seus próprios interesses.

         E quais são os efeitos do racismo?
        Frantz Fanon (1967), antes de dizer dos efeitos do racismo, define o que é outridade, ou melhor, como a branca(o) constrói a negra(o), sendo esta(e), assim, a(o) “outra(o)” do sujeito branco. 
        As(Os) negras(os), por essa via, são como uma tela de projeção em que as brancas(os) elaboram suas fantasias, as quais estão associadas aos medos e aos desejos do sujeito branco: por exemplo, enquanto estes negam serem violentos, e sim civilizados,  tratam as negras(os) como aquilo que negam a si mesmos: assim a negritude é construída pelas metáforas dos animais, dos incivilizados, dos exóticos, etc.
        Ao negarem serem sexualizadas, as pessoas brancas tornam-se defensoras, então, da moral, dos bons costumes, enquanto a negra e o negro passam a constituir esse “outro” oposto do sujeito branco: a puta, o cafetão, o abusador, etc.
Resulta que, enfim, esse outro, atribuído ao negro, na verdade, é um outro branco, criado pela branca ou branco, para denominar forçosamente a pessoa negra.

         Mas qual é o problema?
        Aí que está: quando nos vemos pela perspectivas do outro (seja nas agendas políticas, nos estereótipos das relações sociais, mesmo nos diálogos travados com nós mesmos), não somos sujeitos (político, social e individualmente).
Ora, se as(os) negras(os) não são vistas(os) como sujeitos, sendo nada além da  representação dos desejos, dos medos, da branquitude (portanto, somente vistos como objetos das fantasias dos brancos), suas experiências, suas vivências, tornam-se oprimidas e invisíveis  - e esse é o efeito mais drástico do racismo, como é descrito por Fanon (1967 , p. 112) da seguinte forma:

 “Sempre colocado como outro, nunca como ‘Eu’. O que poderia ser isso para mim? Senão uma amputação, uma hemorragia, uma excisão, que respinga pelo meu corpo inteiro?”.

        Kilomba (2019, p. 39) aponta que Fenon utiliza a linguagem do trauma para falar de experiências cotidianas de racismo, “indicando o colapso corporal e a perda característica de um um colapso traumático”, pois, segundo a pesquisadora, “no racismo, o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ela/ele possa realmente ter.”

        Bem, definido que é discriminação, preconceito e, principalmente, racismo, bem como seus efeitos, podemos, agora, surfar um pouco na onda do #blacklivesmatter e entender a importância do movimento, sem deixar, claro, de levar em consideração as realidades e experiências (na sociedade e nas universidades brasileiras) das leitoras/leitores negras/negros deste Jornal A Matéria.

        Partindo do princípio de que a discriminação, o preconceito e o poder formam o racismo, torna-se possível uma análise acerca da participação da população negra em diversos ambientes. Apesar de representarem mais de 50% da população brasileira, é notório que em espaços como a universidade e o meio político, e em posições de alto escalão de empresas, não se observa essa proporção. Mas por que isso ocorre? Isso não se trata de “vitimismo”, nem falta de garra - pelo contrário, em um país assolado pelo racismo estrutural, no qual 71% das vítimas de homicídio são negras, fica claro que a tão falada “meritocracia” não se faz presente. Dessa forma, é preciso ter ciência de que os conflitos atuais são decorrentes da perpetuação dessas relações desiguais ao longo da história, e que essa dinâmica não acabou quando foi decretada a abolição da escravidão (1888), perdurando até os dias atuais.

        No ensino superior, embora representem uma grande parcela em números absolutos, os negros ainda estão sub-representados: apenas 18,3% dos jovens negros estavam cursando ou haviam concluído o ensino superior (dados de 2018) - para fins de comparação, esse índice entre os brancos é quase o dobro, 36,1%. Daí, depreende-se a importância de ações afirmativas como as cotas - tanto em universidades públicas como em programas de crédito estudantil, como o ProUni -, que promovem um aumento no ingresso de jovens negras e negros no ensino superior, resultando uma aproximação entre esses dois índices.

        No meio político, essa problemática se perpetua. Basta analisar dados de eleições recentes para perceber tal discrepância: na grande maioria desses cargos políticos, mais da metade dos eleitos são brancos. O sociólogo Tadeu Kaçula discorre sobre a questão da seguinte forma: “Dos 513 deputados federais, 24 são negros. Dos 81 senadores, três são negros. Dos 5.570 prefeitos, 1.604 são negros. Dos 57.838 vereadores, 24.282, são negros. Dos governadores dos estados e do DF, nenhum é negro. Dos ministros do STF, nenhum é negro. Não dá mais para deixar de discutir e participar, sobretudo diante do cenário político em que vivemos”. A questão da representatividade na esfera dos três poderes é muito importante, pois o cenário político é uma importante frente de batalha fundamental para desarmar as estruturas da desigualdade racial no país.

        Um outro contexto que deve ser analisado é o ambiente corporativo. Negras e negros ainda são minoria no alto escalão de empresas. Embora sejam uma fatia demográfica crescente, os afro-brasileiros representam apenas 4,7% de cargos executivos. Caso esse índice não ilustre bem a magnitude do problema, no ritmo atual de inclusão, estima-se que as empresas levarão cinquenta anos para adequar o número de negros contratados de forma proporcional ao tamanho da população afrodiaspórica brasileira (termo que se refere aos afrodescendentes, incorporando a seu significado a forçosa retirada das negras(os) de seus respectivos países do continente africano). Essa estratificação se faz presente, também, pela distribuição das posições de trabalho: a população negra representa, além dos 4,7% da chefia, 6,3% de posições gerenciais e 35,7% da folha funcional. E o pior: a estatística que possui maior representatividade negra é a do desemprego: 63,7% dos brasileiros sem emprego são negros. Segundo o professor da FGV Thiago de Souza Amparo, isso não ocorre por falta de profissionais qualificados, o racismo estrutural também se faz presente no mercado de trabalho: “Mesmo os negros sendo bem capacitados, muitas vezes a seleção nas empresas é excludente. Para cargos de chefia, ocorre uma busca por indicação - e o networking perpetua a exclusão.” Existe ainda, uma outra questão: mesmo quando empregado, o profissional negro pode ainda estar sujeito às estruturas de desigualdade - segundo pesquisa do IBGE, uma mulher negra ganha em média 44% do salário de um homem branco, enquanto para homens negros, o índice é de 56% desse mesmo valor.

        Nesse contexto, torna-se evidente que a sub representatividade do negro é um agente perpetuador da desigualdade racial no Brasil e no mundo. Além disso, essa perpetuação da desigualdade dificulta muito a ascensão social e o combate à marginalização da população afrodiaspórica. Isso reforça os alicerces do racismo estrutural e é um dos fatores responsáveis pela recorrência de crimes como os assassinatos de Ágatha Félix, João Pedro Mattos Pinto, João Vitor da Rocha e tantos outros - em especial, o homicídio de Pedro Henrique Gonzaga, que foi sufocado até a morte por um segurança de supermercado e, assim como George Floyd, estava desarmado e foi imobilizado de forma obtusa e inadequada pelos agentes que, mesmo com aviso dos observadores de que o jovem estava inconsciente, não interromperam a ação.

 

        Como podemos, então, ajudar de forma efetiva na luta contra o racismo estrutural?
Muitas ações online que viralizam como hashtags e, mais recentemente, a #BlackOutTuesday - que consistia em postar a mesma imagem de um quadrado totalmente preto em forma de protesto contra a violência e o racismo - mobilizaram milhões de pessoas. Tais ações são necessárias, pois, na era digital, é muito mais fácil levar a informação por meio das redes sociais e, assim, mobilizar mais pessoas para determinada causa. Para que o cenário comece a deixar de ser desfavorável à existência do povo negro - e aos seus  direitos e liberdades, é necessário que passemos a ser mais assertivos em relação às nossas ações, buscando mudar e impactar o quanto for possível.
Procurar entender o que é racismo (estrutural, institucional, cotidiano), suas consequências, se conscientizar melhor sobre os privilégios da branquitude, mesmo que nas mais sutis formas, já é o melhor início de todos. Além disso, consumir materiais que vêm de influenciadores, profissionais, escritores, pensadores e artistas negros é mais do que essencial. Como pessoa que não se considera negra nem como branca, é mais valioso amplificar e dar espaço e visibilidade às vozes negras sobre os problemas, críticas e possíveis soluções, do que externar opiniões próprias que não são tão embasadas quanto a realidade de quem as vive.
        Por último, na era digital é importante que utilizemos dos meios de comunicação para divulgar ações que já estão sendo feitas e, também, participar destas. Seja por meios gratuitos, como assinar petições de justiça online (foram designadas algumas ao final do texto), como, também, acompanhar e seguir perfis que mostram a negritude brasileira, feitos por criadores de conteúdo negros, seja tanto politicamente quanto para questões do cotidiano, como moda, lazer, viagens, finanças e estudos. Combater o racismo das pessoas ao seu redor. Ser a favor de leis e iniciativas que visem a diminuição da desigualdade social. E, se for possível, também doar para organizações e instituições que fomentem a formação acadêmica de quem não é  privilegiado, que promovam a transferência de renda, que lutam pelos direitos das pessoas negras e que, de maneira geral, podem ajudar a amenizar, pouco a pouco, as diferenças políticas e sociais.

        Outra forma de lutar que vá além do internetês, e é, portanto, de necessidade urgente, uma vez que, hoje, também vivemos tempos de combate ao fascismo,  é por meio do Movimento Antifa, um dos movimentos que vem sendo muito falado nos últimos anos e é um dos mobilizadores das manifestações que vêm ocorrendo pelo mundo desde o último final de semana. O termo foi cunhado na época da Segunda Guerra Mundial (em 1946), com o intuito de lutar contra os movimentos totalitaristas-supremacistas que detinham o poder na época e, nos últimos anos, os Antifas ascenderam muito com a ligação a movimentos, como o “Occupy” e o “Black Lives Metter”, mas não podem ser considerados como uma organização. É um movimento composto, muitas vezes, por grupos pequenos e, com a difusão das hashtags (como a #IamAntifa), é difícil definir quem é participante do movimento ou um(a) apoiador(a). O que se sabe é que, ao contrário do que o presidente dos EUA, Donald Trump, diz, eles não são um grupo terrorista e são muito inclusivos quanto aos seus participantes. Há a aceitação de negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, queers, trans, mulheres, homens, ateus ou religiosos e isto impulsiona ainda mais a importância e o tamanho do movimento. Geralmente, os participantes atuam pela internet, investigando ultra-direitistas e os expõem para que pessoas próximas os reneguem ou que seus eventos, palestras e reuniões sejam cancelados, mas algumas vezes há um embate físico entre os dois lados (maiores informações podem ser encontradas nas referências abaixo).

        Reiterando, o Jornal A Matéria tem não tem o intuito de falar por ninguém, apenas tem como função se posicionar contra todo e qualquer ato racista e fascista, bem como levantar a discussão para algo tão enraizado e presente nas sociedades, especialmente na brasileira. Vale ressaltar, também, que diversos outros acontecimentos negativos (lê-se: assassinato a pessoas negras) acontecem todos os dias no país e não tomam a proporção que tomou o ato estadunidense. No entanto, em vez de desmerecer o movimento, o Jornal acredita que participar dele e trazer à tona os pontos discutidos seja de melhor grado para que o mundo se mostre indignado e se engaje em mais esta luta. 

#BlackLivesMatter 
#VidasNegrasImportam 
#Antifa
#ForaBolsonaro

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NOTA 1: Optamos pela linguagem inclusiva por acreditar que o racismo experienciado por mulheres é diferente daquele por homens: não que se diferenciem em todas as situações, mas as mulheres,  divergentes dos homens, sofrem também o racismo genderizado: por exemplo, as domésticas negras que recebem menos que brancas e as mulheres negras que são hiperssexualizadas pela mídia sofrem um racismo diferente daquele vivido pelos homens. Este Jornal pensa que é importante dar visibilidade a todas(os).
Além do mais, a linguagem inclusiva também serve, aqui, para lembrar que, apesar do estopim dos movimentos mundiais ter se dado com um homem, o movimento anti-racismo é importante para mulheres e homens negros, visto que o sofrimento de ambos não deve ser invisibilizado e muito menos oprimido.

NOTA 2: Decidimos optar pelo uso do termo “negra(o)” em vez de preta(o), pois este último é utilizado nos casos (sistêmicos) de racismo cotidiano. Como, por exemplo: “hoje é dia de p.”
O termo negra(o), por sua vez, no Brasil, foi utilizado em movimentos sociais dos anos 60/70, na onda do que ficou conhecido, aqui no Brasil, como movimento negro.
Não deixa, entretanto, o termo negra(o) de ter suas contradição: possui sua origem no latim em “niger” (negro) e, junto com a expansão do império português, alastrou-se de modo a incorporar significados racistas, que colocam o negro em uma posição de inferiorização e subordinação.
Entretanto, a linguagem é mutável: e, hoje, aqui no Brasil, como já dito, negra(o) tem um significado político, dos referidos movimentos. A mídia brasileira faz uso, também, desse termo. Por essas razões, conforme já assinalado, este jornal optou pelo uso de “negra(o)” em vez de “preta(o)”.

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Livros:
BRAY, Mark.  “Antifa: o Manual Antifascista”. Tradução: Guilherme Zigg. 1a Ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

Fanon, Frantz. Black Skin, White Masks. Longon: Grove Press, 1967.
KILOMBA, Grada. “Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano.” Tradução: Jess Oliveira. 1a Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.:

Sites:
Antifa: nem terrorista, nem organização

Por que o índice de negros em cargos políticos é baixo?"

Taxa de jovens negros no ensino superior avança, mas ainda é metade da taxa dos brancos

Não é vitimismo

Por que executivos negros ainda são exceção?

Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil | IBGE

Como você pode ajudar?"


Petições:
Petição de justiça por João Pedro:
http://chng.it/LP2DpS2Z5z
Petição de Justiça por George Floyd:
http://chng.it/zSqJvsRY
Petição para Julius Jones não ser executado:
http://chng.it/7yBvKJhT
Petição de justiça por Breonna Taylor:
http://chng.it/fpTGH7yd