Throwback A Matéria

Throwback 12 ed A Matéria.2

UM RELATO DE UMA ALUNA RECÉM-FORMADA

Escrito por: Julianny Santo

       ALERTA TEXTÃO! Se você está vendo essa foto de beca e capelo, achando que este texto será amorzinho, pode passar reto, ok?

        Há pouco tempo colei grau e me formei em Engenharia de Materiais pela Universidade Federal de São Carlos. Como engenheiros, aprendemos a interpretar o mundo através de números, grandezas e valores. Portanto, pensei que seria uma boa ideia fazer uma retrospectiva de alguns números que contam um pouco da minha trajetória na graduação:

        0: número de professores negros que tive durante a graduação. Cursei mais de 60 disciplinas na UFSCar e, em cerca de 10 delas, tive mais de um professor. Nenhum deles era negro ou negra. 

        1: número de reprovações que tive até o 11º semestre. Entre o 12º e o 15º , reprovei outras 5 disciplinas. 

        1,80: preço da refeição no Restaurante Universitário no período que morei em São Carlos. Nunca paguei pois sempre fui bolsista alimentação na universidade. 

        2: episódios de assédio 'explícitos' que sofri por parte de professores (digo 'explícitos' porque foram os mais evidentes). Os assédios mais 'sutis', vish, perdi as contas. 

        2: minha colocação no processo de seleção para participar do BRAFITEC em 2014, quando eu estava no 7º semestre. Na minha entrevista, a banca era composta apenas de professores homens. Um dos avaliadores me perguntou por que eu tinha reprovado a disciplina de Cálculo 1 no 1º semestre, falei que na época eu ainda não tinha me acostumado com o ritmo da universidade, mas que no semestre seguinte, passei na disciplina e, no ano seguinte, fui tutora dessa mesma por dois semestres. Ele não me pareceu muito convencido. Um outro professor me perguntou se eu tinha contato com outros alunos que já estavam ou estiveram na França. Respondi que sim. Ele me perguntou se era com alguma menina. Respondi novamente que sim. Ele disse que isso era importante, pois as meninas sofriam mais, tendiam a ter mais problemas e se afetarem mais com a distância. Engoli seco. Comentei que tinha a intenção de fazer o duplo diploma e fui vetada por conta da minha reprovação, se eu fosse, seria para ficar apenas um ano. Além do histórico, eu tinha levado meu currículo, comprovantes de proficiência e das cinco atividades de pesquisa e extensão que eu participava. Nenhuma outra pergunta relevante foi feita. Depois da minha aprovação no processo, o coordenador do projeto reconsiderou meu caso na época e me autorizou a tentar o duplo. 

        3: número de vezes que procurei acompanhamento médico. Em uma delas, fui informada que a fila de espera para ser atendida por um psicólogo no serviço de saúde da UFSCar era de aproximadamente um ano, após a triagem. Quando quis dar entrada no pedido de afastamento, fui desencorajada por um profissional de saúde com a seguinte justificativa: 'você não está com um braço quebrado, então tem condições de assistir às aulas. Tem que enfrentar essa situação'. Saí do consultório com uma receita aumentando a dose do medicamento antidepressivo. 

       4: Crises graves de síndrome do pânico. Durante a mais grave delas, comprometi o andamento do meu estágio e do meu diploma no exterior. Meus tutores de lá me encorajaram a interromper imediatamente o intercâmbio para me tratar. Chegando ao Brasil, a maioria dos conselhos giravam em torno de 'mas você está tão perto de concluir, não desista agora!', 'se forme, que daí você vai poder arrumar um emprego bom e vai poder pagar um psicólogo', 'aguenta mais um pouco', 'fica firme', 'faculdade é “foda”, é assim mesmo'. Levei 4 semestres pra passar na última disciplina do curso. Ouvi que não conseguia passar na disciplina porque não assistia às aulas e não estudava. Não por acaso, só consegui passar (e me formar) quando fui embora de São Carlos (voltando apenas para fazer as provas) e comecei a me tratar pelo SUS em São Paulo. Quando falei ao psiquiatra que estudava na UFSCar, ele disse que meu quadro fazia sentido e fez uma carta recomendando meu afastamento. 

   Também comentou que a saúde mental dos alunos em universidades como a UFSCar está se tornando algo muito sério e grave e que eu fazia muito bem em me tratar. 

      5: projetos de pesquisa e extensão nos quais estive envolvida. Desde iniciação científica, empresa júnior, organização de semana acadêmica até tutoria de cálculo. Foram essas as atividades que me mantiveram no curso durante os 4 primeiros anos e se tornaram as coisas mais relevantes e satisfatórias que produzi durante a graduação. Algumas delas me sustentaram financeiramente através de bolsas do CNPq e da própria UFSCar. 

     6 meses: meu recorde de permanência ininterrupta em São Carlos, porque eu não tinha dinheiro para pagar o ônibus para São Paulo (na época, a passagem de estudante custava cerca de 27 reais). Em janeiro de 2019, pagarei a última parcela da última passagem que comprei para ir e voltar de São Carlos. 

         8: créditos obrigatórios cursados em Humanidades. São exigidos 256 créditos para integralização do curso. 

        9: quilos perdidos durante um período em depressão profunda, coisa de semanas. Mas boatos de que eu estava lindíssima magrinha. É isso que chamam de ver o lado bom das coisas? 10: média final da disciplina de Sociologia Industrial e do Trabalho que cursei no 2° semestre. Único 10 do meu histórico. Está no meu “TOP 5” de disciplinas que mais gostei de cursar. 

         15: semestres como aluna de graduação, passando 4 deles em intercâmbio como bolsista da CAPES. 

        19: número de vezes que tive disciplinas ministradas por mulheres (tanto exclusivamente quanto em parceria com outros professores). Cursei mais de 60 disciplinas na UFSCar. 

        20: tempo em horas que levei entre a última prova da graduação e a minha matrícula em um outro curso. 

       23: pessoas diferentes com quem morei ao longo da graduação. 

        300: valor em reais do auxílio moradia mensal concedido aos alunos de baixa renda da universidade até 2017. Fui contemplada com essa bolsa por quase 4 anos (fora desse período, morei no alojamento da universidade). 

        759.71: nota no ENEM com a qual passei na UFSCar em 2011, na 4ª chamada. Foi o primeiro ano de ingresso exclusivo pelo SISU. 

        12830: meu IRA (índice de rendimento acadêmico) final. No meu 'auge acadêmico', cheguei a quase 17000 (a pontuação máxima é 20000). Não raramente, consideram que todos os outros números são pouco perto desse aí. Algumas pessoas sabem o IRA de alunos que se formaram 20 anos atrás de cabeça. Cada coisa! Bom, nem meu IRA final e muito menos o meu antigo IRA 17000 dizem muito sobre mim. Na verdade, eles não dizem absolutamente nada. 

        Eu tinha muitas certezas quando entrei na faculdade: me formar, prestar o concurso da Petrobrás, depois fazer uma pós. Brilhar nas publicações, ir em um “semnúmero” de congressos, ganhar prêmios atrás de prêmios, escrever livros. Pesquisar até ficar velhinha. Eu tinha 17 anos. Reprovei Cálculo 1 e meu mundo caiu, a partir daí eu só queria saber de notas altas e acumular um monte de atividades extracurriculares para turbinar o currículo. Currículo turbinado, procurei por N linhas de pesquisa, porque era hora de começar uma IC: dois professores se recusaram a me orientar (um iria se aposentar e o outro já orientava muitos alunos), o terceiro nem olhou na minha cara e disse que com aquela minha reprovação seria impossível pedir uma bolsa (e eu precisava muito da bolsa para me manter). Parti para um dos professores mais comentados entre os alunos do departamento, mas que a princípio não estava entre as linhas de pesquisa que mais me interessavam. Pensa num cara genial. Foi a primeira vez que eu enxerguei uma pessoa por trás do engenheiro. Me orientou, pediu bolsa para o nosso projeto, me ensinou um mundo de coisas. E orientou mais outros muitos amigos: mulher, homem, pobre, rico. Tinha um pouco de tudo no laboratório. Eu tive muita sorte por sempre contar com orientadores espetaculares durante o intercâmbio, estágios, TCC... Todos incríveis, acessíveis, humanos. Me aconselharam, me advertiram, me apoiaram, me cobraram. Dividiram experiências pessoais e profissionais abertamente. Coisas que a gente jamais aprende ficando apenas em sala de aula, enfiado em livros e slides. 

        Por falar em slides, as aulas da graduação foram sofríveis em sua maioria. Posso afirmar sem sombra de dúvidas que eu não estaria aqui não fossem as provas antigas, os resumos e as listas dos veteranos (acho que esse comentário eu posso inclusive estender para vários colegas). 

        Recebi muitos 'parabéns por essa conquista', 'você mereceu muito, lutou demais'. Tudo dito com um carinho enorme por pessoas que gosto muito. Muitos amigos me perguntaram como eu estava me sentindo. Aliviada? Feliz? Não sei dizer. Mano, sei lá. Então, me perguntaram se tinha valido a pena. Essa resposta foi mais fácil: NÃO. Assim, bem grande. É mais bonito a gente romantizar as noites em claro, dependência de medicamentos, sofrimento, abuso mental e sacrifícios físicos para no fim dizer que 'tudo valeu a pena', né? Cada pessoa abriu mão de coisas diferentes em níveis diferentes, então digo apenas por mim: não valeu, não vale, não valeria nem em um milhão de anos. 

        Mas não me arrependo, porque essa experiência também me trouxe muita coisa boa: pude conhecer pessoas incríveis, lugares maravilhosos, viver vidas com as quais eu nunca tinha nem sonhado. Eu cresci, amadureci. Eu não sabia nem o que era feminismo antes de entrar na universidade, dá para acreditar? Eu achava que cotas eram desnecessárias, que 'quem quer, consegue'. Fácil assim. 

        Logo eu, bolsista de alimentação e moradia durante todo esse período. Hoje eu não tenho NENHUMA dúvida de que sem esses auxílios, eu não teria conseguido cursar nem um semestre. Eu me achava uma super lutadora, a mina da favela que foi estudar numa universidade pública, coisa mais linda. Caso digno de quadro do Luciano Huck ou da Eliana. Olha, eu sou tudo isso mesmo (sou muito mais, para falar a verdade). Mas não sou especial pelos motivos que eu pensava. Eu sou incrível porque agora eu tenho a humildade de reconhecer os meus privilégios, de entender que eu cheguei até aqui depois de me darem muitas oportunidades. Que para cada Julianny que tem essa trajetória 'brilhante', tem MUITA gente ótima que fica para trás. E que essa minha história foi construída com o sangue e o suor da minha mãe, da minha irmã, meus e também de muitas outras pessoas que eu nem conheço. Mas existem pessoas que por mais que queiram, não conseguem. Porque não têm oportunidade. Eu tive muitas e mesmo assim foi difícil. 'Ai, mas cada um faz a sua oportunidade'. Uhum. Tá. Eu também repetia isso igual a um papagaio, até que pude me situar e identificar meus privilégios. Recomendo esse exercício para todo mundo. 

        Desde que descobri que tinha conseguido me graduar, venho pensando em formas de retribuir para a minha família e para a sociedade o investimento intelectual e financeiro que foi feito na minha formação. Quanta responsabilidade e possibilidades um diploma traz! Espero que 'engenheira' não seja a melhor descrição que possam fazer de mim. Que triste seria me reduzir a apenas isso... 

        Obrigada a todas as pessoas que cruzaram meu caminho nesses anos, onde quer que tenha sido. Desde professores queridos, colegas, amigos e até o tio do docinho do RU. Termino a graduação com muito mais dúvidas do que respostas, mas se tem uma coisa que eu aprendi nesse lugar, foi a pensar. Então, vamos seguir pensando e buscando por maneiras de agir!

[Texto retirado da 12ª edição do Jornal A Matéria, disponível em: https://bit.ly/EdicoesAMateria]