Materiais e Formula 1

Materiais e Formula 1
       

        Como estudantes de Engenharia de Materiais, observamos nossa área de estudo nos mais diversos lugares em nosso cotidiano. Recentemente, no Grande Prêmio do Bahrein, na Formula 1, o piloto Romain Grosjean se envolveu em um grave acidente: após uma colisão com a barreira, seu carro partiu-se ao meio e explodiu. Apesar da brutalidade – o piloto sofreu uma desaceleração de 67G –, Grosjean conseguiu sair consciente e andando. Na busca pelo melhor desempenho aliado à segurança, a Engenharia de Materiais é largamente aplicada nas competições de automobilismo e, particularmente, na Formula 1 – e é esse o tema do texto de hoje!
        Cada esporte tem seu tipo adequado de vestimenta, geralmente desenvolvida com uma tecnologia que favorece o desempenho do atleta, e na Fórmula 1 não é diferente. Porém, a vestimenta de um corredor de F1 tem uma função ainda mais importante: a proteção. A década de 1950 marcou o início da Fórmula 1, e contou com 15 vítimas de acidentes fatais, e um dos grandes problemas era justamente o macacão que era confeccionado em algodão, couro e lona, uma combinação facilmente inflamável, além de conter partes metálicas que agravavam as queimaduras em atletas. A vestimenta visava apenas proteger as roupas dos atletas de manchas de óleo, além disso não se fazia uso do capacete.
        Foi em 1960 que o Nomex, tecido derivado da fibra de aramida, foi desenvolvido pela Du Pont para ser usado no uniforme do exército norte-americano. Já nessa época o material suportava até 370ºC, mas era necessário o uso de diversas camadas o que fazia com que ele fosse desconfortável, já que o calor dentro do macacão era muito grande. O macacão anti chamas se tornou obrigatório na Fórmula 1 em 1975 e foi sendo cada vez mais aperfeiçoado, tornando-se mais leve e ainda mais resistente ao calor. Atualmente o macacão conta com duas a quatro camadas de Nomex e permite a dissipação do suor, e em testes o tecido é submetido a temperaturas superiores a 600ºC, sendo que a temperatura dentro do macacão não pode exceder os 41ºC. Além disso, a Federação Internacional de Automobilismo exige que o zíper dessas vestimentas, usadas tanto por pilotos como pelos mecânicos, sejam confeccionados com materiais que não possam derreter ou transferir calor para o corpo do usuário.
        A título de curiosidade, o macacão de cada piloto profissional é feito de maneira personalizada, e as roupas e meias usadas por baixo dele também são confeccionadas com material resistente a chamas. O macacão do piloto não pode passar de 1,2Kg para que não prejudique sua mobilidade e deve ser resistente a pelo menos 300 N sem que seja rasgado ou perfurado.
        Uma das partes mais importantes do projeto, que influencia diretamente na segurança e na dirigibilidade do carro, é o chassi. Existem vários tipos de chassi, destinados a diversas propostas de veículos. Na Formula 1, o tipo utilizado pelas montadoras é o “monocoque”, por proporcionar uma melhor dirigibilidade e maior proteção ao piloto. Além disso, a escolha dos materiais na fabricação do “monocoque” é feita de forma a priorizar a redução de peso e a segurança – e quando pensamos em baixa densidade e resistência mecânica, qual material imediatamente vem à cabeça? Isso mesmo, fibra de carbono! Para aumentar a rigidez estrutural, as camadas de fibra de carbono são recheadas com uma “colméia” de alumínio. Ademais, também são empregadas fibras como Kevlar e Nomex, para aumentar a resistência à perfuração e garantir ao piloto uma proteção antichamas. Corrida após corrida, a importância de um chassi bem projetado é provada: a Fórmula 1 não tem nenhum acidente fatal há sete anos. Um exemplo relativamente recente de como todo o esforço de pesquisa vem sendo recompensado pôde ser observado em 2007, no acidente do polonês Robert Kubica durante o GP do Canadá, em que o piloto atingiu uma barreira a mais de 300 km/h, sofrendo uma desaceleração de 75G, e saiu sem ferimentos graves, voltando a correr após apenas duas corridas afastado. Como se não bastasse, no ano seguinte ele venceu o mesmo Grande Prêmio no qual se acidentara. Ademais, a proteção para a cabeça dos pilotos – chamada de “halo” ou auréola, em português, justamente por ter o formato de uma – é feita de titânio de grau 5, que oferece resistência mecânica aliada à baixa densidade. Essa proteção é considerada, juntamente com o macacão antichamas, responsável pela sobrevivência de Romain Grosjean, uma vez que – apesar do impacto – a cabeça do indivíduo não foi atingida e ele permaneceu consciente e em condições de escapar do carro.
        Além de ser um dos principais campeonatos de pilotos e de montadoras, a Formula 1 é uma vitrine tecnológica onde diversos avanços são postos à prova. Uma das principais mudanças dos últimos anos foi a adoção de sistemas híbridos nos carros. Neste contexto, a Engenharia de Materiais se faz presente na construção das baterias desses sistemas. A tecnologia empregada nas células é a de íon-Lítio, uma vez que tais baterias precisam ser carregadas e descarregadas a taxas muito elevadas. Por conta disso, elas contam com sistemas de refrigeração à base de óleo ou de água. O envoltório das baterias também é otimizado visando a melhor performance possível: buscando conciliar a redução de peso do veículo à resistência mecânica, o principal material empregado é a fibra de carbono pré-impregnada com resina epóxi. Dentro da capa, também são empregados materiais metálicos para criar uma gaiola de Faraday, de forma a evitar interferências eletromagnéticas com os outros sistemas embarcados do carro. Finalmente, algumas fabricantes optam pelo preenchimento do invólucro da bateria com gás inerte para evitar a condensação de água, que pode comprometer todo o sistema eletrônico.
        Os pneus desempenham uma função crítica no carro de Formula 1, por serem os seus pontos de contato com a pista, responsáveis por garantir a aderência durante acelerações, frenagens e curvas em que os pilotos são submetidos a acelerações superiores a 4G. Por isso, a Engenharia de Materiais é fortemente aplicada para aprimorar esses componentes fundamentais do carro de corrida. Visando – como sempre – a resistência mecânica e a redução de peso, as rodas são feitas de ligas de magnésio. Enquanto isso, os pneus de corrida são feitos objetivando propriedades diferentes daquelas encontradas nos pneus de carros de passeio: ao invés de longevidade, busca-se a melhor performance possível. Para tal, além da borracha, os pneus possuem uma estrutura interna de nylon e poliéster, que proporciona maior tenacidade frente às forças e cargas da corrida (em pneus convencionais, a estrutura é feita de aço). Ademais, existem cinco tipos diferentes de pneu homologados para a competição, e eles diferem no composto de borracha utilizado e no padrão de ranhuras da superfície de contato: os pneus para pista seca apresentam superfície de contato lista, de forma a maximizar a aderência, enquanto os pneus de chuva apresentam sulcos para melhorar a performance em pista molhada. Os tipos de composto variam quanto a sua dureza – compostos mais macios proporcionam melhor aderência, mas menor durabilidade. Enquanto isso, os compostos menos macios, apesar da menor performance, possibilitam uma maior autonomia de rodagem ao piloto, o que pode fazer a diferença no planejamento das paradas para troca de pneus. Vale lembrar que a temperatura da pista também influencia diretamente na escolha dos pneus. Um outro detalhe interessante é o preenchimento do pneu: ao invés do ar atmosférico comprimido tradicional, utiliza-se uma mistura rica em nitrogênio para calibrá-los, de forma a minimizar as variações de pressão interna decorrentes do aquecimento dos pneus durante a corrida.
        Não é nenhuma novidade que a velocidade dos carros é o fator mais importante em uma competição de Fórmula 1, mas, como qualquer outro veículo, os carros de corrida também precisam desacelerar e parar e para isso contam com os freios. A função do sistema de frenagem é dissipar a energia cinética, transformando-a em calor, e por isso os materiais usados dos discos do freio devem ser resistentes a altas temperaturas, assim como precisam ter um bom sistema de arrefecimento. Atualmente os freios usados em carros de F1 são do tipo carbono-carbono, e a ideia de usar esse material veio da aviação, mais precisamente do jato comercial Concorde. Tanto no caso do jato quanto no de carros de corrida a massa é um fator essencial, e por isso substituir os antigos discos metálicos por discos de carbono faz toda a diferença, além do que os discos de carbono são extremamente estáveis trabalhando em altas temperaturas. O primeiro carro a competir com um sistema de freios com discos de carbono foi o BT45 da equipe Brabham em 1976.
        Os discos do BT45 eram feitos como um sanduíche. No centro, um disco de aço incorporado à região central, onde o disco é fixado no cubo de roda, e, cobrindo este disco de aço pelos dois lados, uma camada do material misto de fibra de carbono e resinas epóxi Em um disco metálico convencional, a região de fixação é em alumínio, mas as altas temperaturas que a fibra resiste e poderia chegar preocuparam a Dunlop, desenvolvedora do sistema de freios em carbono, assim adotou-se o aço. Por causa das altas temperaturas que a fibra suporta, muitos problemas começaram a surgir em carros com esse tipo de discos de freio, o fluido de freio superaquecia, as pinças eram danificadas, entre outros problemas causados pelo atrito. Devido a todos esses problemas citados anteriormente, os freios de carbono foram por muito tempo permitidos apenas em treinos, mas com o passar dos anos mudanças foram sendo realizadas, tanto nos materiais dos outros componentes do sistema de frenagem e no fluido de freio, quanto no sistema de arrefecimento do carro como um todo, hoje o sistema de freios de carbono já é comprovadamente seguro e eficiente e é o modelo padrão para os carros de Fórmula 1.
        Os discos de carbono, entretanto, podem trazer problemas quando estão frios pois em temperatura ambiente, o poder de frenagem é reduzido pelo coeficiente de atrito não estar no ponto adequado, uma vez que ele varia com a temperatura do material. Mas, como os carros de F1 estão sempre em altíssima velocidade e freando, isso mantém o disco aquecido mesmo na primeira volta da corrida, já que os pilotos fazem a volta de apresentação. Para carros que não atingem uma velocidade tão alta, entretanto, o mais comum é usar pastilhas de cerâmica no lugar das de carbono já que elas apresentam uma excelente eficiência, provocam menos ruídos e não têm o mesmo problema de eficiência a temperaturas baixas. Quanto ao futuro dos freios na Fórmula 1, muito tem se especulado sobre um sistema carbono-cerâmica, que segundo Mario Almondo CEO do grupo de desempenho da Brembo, é uma alternativa que manteria o alto desempenho dos carros de F1, além de serem mais resistentes e melhores para o meio ambiente, por soltarem menos partículas de carbono durante seu uso e por terem um tempo de vida útil maior.
        Várias tecnologias dos automóveis usados nas ruas nascem dentro da Fórmula 1 e uma deles foi o câmbio semiautomático, também conhecido como “paddle shift” ou câmbio borboleta graças a disposição das alavancas que ficam na parte de trás do volante o que possibilita que o piloto possa trocar de marcha sem tirar as mão do volante e o carro responda mais rápido que um modelo de câmbio automático. O “paddle shift” foi introduzido na competição pela equipe Ferrari em 1989, o idealizador do projeto foi John Barnard e o desenvolvedor foi o brasileiro Roberto Pupo Moreno. Já em sua primeira corrida usando o câmbio borboleta a Ferrari obteve êxito e o corredor Nigel Mansell venceu a corrida, que aconteceu no Brasil. Uma curiosidade é que tanto o câmbio semiautomático quanto o automático são tecnologias que podem ajudar na acessibilidade para motoristas com dificuldades motoras.
        Antes da invenção do câmbio semiautomático, os carros de Fórmula 1 tinham câmbio manual e possuíam a alavanca ao lado direito do volante. Além disso, os pilotos precisavam usar o pedal de embreagem que, como nos carros comuns, fica na parte inferior esquerda ao alcance dos pés do motorista. Atualmente as embreagens usadas nos carros de F1 ainda são do tipo borboleta, em 2020 a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) realizou uma mudança no que tange as pás de embreagem, tendo como motivação deixar as largadas mais emocionantes e mais dependentes da habilidade individual de cada piloto. O novo regulamento diz respeito ao uso de diferentes tipos de embreagens que devem ser ativadas por pás tipo tração, obrigatórias para cada piloto. Se as equipes quiserem usar duas pás de embreagem, elas devem ser idênticas e os pilotos deverão provar que são iguais. Além disso, a pá da embreagem deve funcionar de forma linear, tornando os movimentos do piloto muito mais importantes, já que será a única forma de acionar a embreagem. O Artigo 9.2.1, seção F da regulamentação técnica declara que: “Para assegurar que os sinais usados pela ECU da FIA sejam representativos das ações do piloto, cada competidor é obrigado a demonstrar que a porcentagem da pá calculada pela ECU não se desvia mais de +/- 5% da posição física do dispositivo operacional, medida como uma porcentagem em toda a sua faixa utilizável.”
        Esperamos que tenham gostado deste passeio pelo mundo do automobilismo! Se você tem alguma sugestão de tema, fique à vontade para nos contatar via “inbox” ou por este formulário. Até a próxima!

Referências:
https://juliannecerasoli.com.br/2018/05/10/por-dentro-da-f-1-e-da-tecnologia-de-macacoes-e-capacetes/
https://www.redbull.com/br-pt/saiba-como-e-feito-o-macacao-do-piloto-de-f-1
https://autoentusiastas.com.br/2014/07/discos-de-freio-de-carbono-nas-ruas-e-nas-pistas/
https://motorsport.uol.com.br/f1/news/formula-1-pode-ter-freios-de-carbono-e-ceramica-no-futuro/4448444/
https://medium.com/petrobras/o-que-a-evolu%C3%A7%C3%A3o-do-c%C3%A2mbio-dos-carros-de-f1-trouxe-de-benef%C3%ADcios-fora-das-pistas-89a1397db470
https://ge.globo.com/motor/formula-1/blogs/f1-memoria/post/2019/02/01/ha-30-anos-ferrari-apresentava-primeiro-carro-com-cambio-semiautomatico-na-historia-da-f1.ghtml
https://www.f1mania.net/f1/mudanca-na-embreagem-em-2020-para-tornar-as-largadas-mais-dependentes-dos-pilotos/