Masculinidade e Engenharia

Masculinidade e Engenharia

Escrito por: Giovanni Nilson Rosalino

        A engenhosidade de se resolver os trabalhos domésticos (ou extra-domésticos) voltados à construção, instalação e aos reparos; e o raciocínio lógico, de muita física e matemática, imbuído da importância de se resolver os assuntos principais de quaisquer famílias, são virtudes geralmente relacionadas, apesar de não haver razões concretas, principalmente aos homens.
        O que não nos fica claro desde sempre (e que nos acompanha como um fantasma que sempre tenta se comunicar), é: por que são os pais, e não as mães, que cuidam do dinheiro e decidem os próximos passos financeiros da família?
        Por que são os pais, e não as mães, que fazem as matemáticas necessárias para comprar fios, madeiras, pisos e o que mais for, e os responsáveis, também, pelas instalações (ou o comando delas)? (Cabem, aqui, inúmeros outros exemplos)
        A verdade é que, na sociedade, há uma divisão sexual do trabalho que, embora não saibamos materializá-la pelas palavras enquanto crianças, sentimos constante e diariamente por suas amarras e relativas liberdades.
Para simplificar, em essência, há o que é para o homem e há o que é para a mulher, e isso influenciará, anos depois, nas escolhas de nossa profissões.
        Ainda a respeito da divisão sexual do trabalho, apesar da mesma se assentar no sexo (leia-se: divisão SEXUAL do trabalho), é importante frisar que ela não nasce com nossos órgãos genitais.
        A DST (Divisão Sexual do Trabalho) foi construída histórica e socialmente ao longo do “avanço” ou “desenvolvimento” do capitalismo, separando as tarefas e o espaço que deveriam ser do homem (o espaço público) daquelas tarefas e espaço que deveriam ser da mulher (o espaço privado).
        Assim, a mulher, em casa, teve (e ainda deve) cuidar dos filhos, levá-los e buscá-los à escola, mantê-los limpos, educados, alimentados. Teve (e deve) também cuidar do marido, preparar-lhe o almoço, as roupas e a casa para quando chegar do trabalho. A mulher, em essência, por essa divisão sexual do trabalho, teve (e deve) ser a responsável por formar os trabalhadores (ou seja, os seus filhos) e por mantê-los no trabalho (ou seja, o seu marido).
        Seu trabalho, entretanto, apesar de ser tão importante para o capitalismo (por permitir que a oferta de trabalhadores continue se mantendo) não é valorizado: o que coloca a mulher em uma posição subjugada, inferiorizada, e mesmo de dominação.
O homem, por outro lado, não foi só valorizado em seu trabalho (relativamente à mulher, ainda hoje recebe mais que as mesmas e ocupa os cargos mais altos), como também, no ambiente doméstico, foi colocado em um pedestal, não tendo que cuidar dos filhos nem de co-participar da realização das tarefas domésticas.
        Além da referida DST, considera, ainda, as construções históricas e sociais que alimentam a masculinidade (a qual constitui e dá forma ao que conhecemos como “homem”).
        A virilidade (um dos aspectos da masculinidade), por exemplo, apoia-se em noções de domínio, de conquista, de liberdade; e constitui-se historicamente, mantendo-se, desde então, à época das navegações portuguesas: seja no domínio sobre os povos que não eram europeus (os americanos, africanos, asiáticos), seja no domínio sobre as mulheres (que, em situação de guerra, eram estupradas, simbolicamente representando a subjugação de um povo sobre outro).
        A virilidade, assim, aspecto central dos desbravadores, exploradores portugueses, continuou a existir, a partir de então, como elemento central, de outras atividades exclusivamente masculinas, principalmente aquelas relacionadas à guerra, à dominação e à engenhosidade.
        Ora, aqui cabe destacar que a Engenharia, a grande área da Engenharia, teve seu início no ambiente militar, de guerra, de dominação, sendo utilizada para definir as táticas militares, para comandar e organizar tropas e mais tropas, para, por fim, produzir e gerenciar armas de fogo.
        É possível dizer, por exemplo, que a virilidade masculina, o domínio do homem sobre os demais, se antes encontrou terreno nas explorações marítimas, mais tarde encontrou sua sobrevivência em outras formas de capitulação, como por meio das guerras, desembocando, por fim, tal processo histórico, na vida cotidiana: sendo o protagonismo e a liderança do homem um aspecto da masculinidade que o impele às atividades manuais, aos consertos, ao gerenciamento das contas, à utilização prática das ciências exatas.
Nesse ínterim, constituindo, todos nós, essa masculinidade precária, falsamente fundada, mesmo covarde, porque circunscreve as pessoas a uma área ou outra sem qualquer vocação; constituindo, toda a sociedade, essa divisão sexual do trabalho, igualmente covarde e opressora, porque mantém as mulheres, se não confinadas em casa, em posições inferiores, seja nos cargos das empresas, seja ao receber salários menores; nesse contexto, a Engenharia configura-se como área principalmente relacionada ao lócus masculino, a um lugar que pertence, primeiramente, ao homem, o qual é mais estrategista, possui mais raciocínio lógico, é mais capaz, e, no fim, em conclusão, o qual é inevitavelmente mais homem.
        Tá aí que, embora cada vez mais mulheres escolham a Engenharia, as vagas de cursos “Engenharia Raiz”, como a Engenharia Mecânica, ou Elétrica, ainda são preenchidas predominantemente por homens. Ademais, homens, ainda neste século, ganham, em média, 25% a mais que as mulheres, mesmo que estes e aquelas desempenhem o mesmo cargo. Acrescenta que, segundo o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA), do total de engenheiros credenciados (962.349), apenas 177.129 são mulheres, o equivalente a 18,4%.
        Claro que não dá para sermos pessimistas, mesmo porque este cenário vem mudando, com o crescimento das mulheres, de 2016 a 2018, em 46% no número de formadas em Engenharia, segundo ainda dados do CONFEA.
Entretanto, a sociedade só conseguirá trazer mais igualdade para este quadro, se identificarmos as garras que nos prendem em escolhas delimitadas e nos desvencilharmos delas. O mundo dos homens não será mudado completamente se não combatermos toda a masculinidade tóxica impregnada nas nossas relações: enquanto isso, no geral, somente as mulheres de alto poder aquisitivo (e poucas) serão permitidas (com exceções) a entrar no mundo dos homens.
        Temos, no entanto, exemplos para seguir. Para nos orgulhar. Para fazer que as mulheres sejam o que bem entendem. Como, por exemplo, a engenheira Staphanie Kwoleke (1923 - 2014), responsável por inventar o Kevlar, fibra ultra forte (5x mais que o aço) e extremamente leve, utilizada em coletes à prova de bala e em pneus.
        Ou a engenheira Aprille Ericsson (1963 - ), a primeira mulher negra a receber P.h.D do Centro Especial de Voo Espacial Goddard da NASA, coordenando, hoje, um projeto que monitora, por satélites, o degelo das calotas polares, relacionando, com tal processo, a aceleração do aquecimento global.
        Ou, mesmo, no caso brasileiro, a engenheira civil Enedina Alves Marques (1913 - 1981) que, no entanto, para ser respeitada no seu ambiente de trabalho, tinha que assumir uma pose masculina, austera, séria, portando, em seu ambiente de trabalho, um macacão (apesar de vaidosa e de adorar usar roupas “femininas”) e uma arma. A brasileira Enedina foi responsável pela Usina Capivari-Cachoeira e atuou, em sua área, até sua morte.
        A engenheira e o engenheiro, como bem sabemos, têm que pensar nas mudanças políticas e sociais que suas intervenções podem provocar.
        Mas é importante que pensemos, também, em mudanças políticas e sociais que mudem os moldes que formam o engenheiro padrão: possibilitando, assim, para a área, a contribuição de quem tem muito a dar, o desenvolvimento científico sem os moldes que restringem ele próprio, enfim, possibilitando que mulheres e homens, que seres humanos, contribuam da melhor forma possível, em favor da felicidade pessoal e da própria humanidade.

        Engenheiras e engenheiros, uni-vos contra as opressões da masculinidade e da divisão sexual de trabalho Uni-vos contra a masculinidade tóxica!

        E a favor de um mundo mais humano para todas (os).

Fontes:
“Profissionais por gênero”. Disponível em: https://relatorio.confea.org.br/Prof…/ProfissionaisPorGenero (Acesso: 27/05/2020)
“10 Engenharias que marcaram história do mundo”. Disponível em: https://www.vdibrasil.com/10-engenheiras-que-marcaram-hist…/ (acesso: 27/05/2020)

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Tradução: Coletivo Sycorax. Editora: Elefante, São Paulo, 2017.
LUGARINHO, Mário. “Outro barões assinalados: a emergência do discurso gay na produção literária portuguesa contemporânea”. In: Actas do CIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 2004.