[20º EDIÇÃO] Curiosidades: O Artesanato sob uma perspectiva dos materiais

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Escrito por: Eduardo Bouhid e Pietro Bortolini


Caracterizadas pela sua produção de forma não-industrial, as peças de artesanato são atualmente mais associadas ao seu contexto artístico, decorativo e cultural. Entretanto, antes de haver meios para produção em massa de utensílios domésticos - ou seja, antes da Revolução Industrial - o método artesanal era a principal forma de criação de diversas ferramentas e utensílios essenciais. Em nossa coluna de curiosidades, trouxemos recentemente diversas reflexões acerca das convergências entre a Ciência dos Materiais e a produção artística. Convidamos, assim, nossos leitores a acompanhar esta reflexão sobre a relação entre materiais e artesanato!
Primeiramente, vamos falar sobre materiais cerâmicos, que apresentam uma relação muito tradicional com o artesanato. Existentes há mais de dez mil anos, as produções cerâmicas a base de argila queimada - as louças - foram provavelmente as primeiras peças de artesanato a serem fabricadas. Destacam-se produtos como os vasos, pratos, jarras e xícaras que, além de seu valor utilitário, são procurados por sua função decorativa. Na categoria das louças, pode-se dividir os materiais em três categorias principais. A primeira delas é conhecida simplesmente como “cerâmica”, que consiste na modelagem da peça em argila, que é seca e então queimada, produzindo a peça final. As porcelanas, por sua vez, são derivadas da argila misturada com caulim (argila branca) e minerais como quartzo e feldspato. Essa composição confere à porcelana características peculiares, como o aspecto vítreo e a isenção de porosidade. As Faianças também são produzidas à base da argila com caulim, este, porém, em proporção menor. Essa mudança, aliada à menor temperatura de queima, resulta em uma louça resistente como a porcelana, porém com alta porosidade - por isso, as faianças passam por um processo de esmaltação. A aplicação do esmalte confere às peças uma tonalidade creme/marfim, mas, sob ação do tempo, elas podem apresentar um aspecto “descascado”. Esse fenômeno acontece devido à baixa temperatura de cozimento da faiança, que faz com que a camada de esmalte não seja fundida à peça, atuando como uma “casca”. Além dos tradicionais utensílios domésticos, também são produzidos em louça azulejos e esculturas.

Ainda no escopo dos materiais cerâmicos, outra categoria de artesanato muito apreciada é a dos vidros. Primeiramente, vale destacar a relação entre os termos “vidro” e “cristal”: de forma simplificada, todo cristal é um vidro, mas nem todo vidro é um cristal. A principal diferença entre os dois reside em sua composição, porém as diretrizes exatas podem variar de região para região. Nos Estados Unidos, qualquer vidro composto por mais de 1% de monóxido de chumbo é considerado um cristal. Já na União Europeia, o teor de chumbo deve estar entre 10% e 30%, além de que a peça deve possuir um índice de refração entre 1.5 e 1.7. O processo artesanal de fabricação de vidros pode ser dividido em duas etapas principais: o sopro e o corte. A primeira delas consiste em coletar o vidro fundido com uma ferramenta chamada blowpipe - uma espécie de zarabatana de metal. Em seguida, o artesão assopra pelo tubo, “inflando” a peça de vidro e moldando-a de maneira que adquira a forma desejada. Algumas peças de vidro passam somente pelo processo de sopro, não sendo submetidas ao corte, que se baseia no uso de ferramentas como tesouras e alicates para modelar e ornamentar o vidro amolecido. Um exemplo de artifício produzido por este processo é o desenho de padrões na superfície do vidro. Vale lembrar que durante todo o processo de fabricação, o artesão costuma reaquecer o vidro, de forma a garantir sua maleabilidade. Outra informação relevante é sobre como ocorre a produção do vidro colorido: para obtê-lo, adicionam-se óxidos, sulfetos e cloretos metálicos ao vidro derretido, produzindo-se, assim, vidros de diversas tonalidades.

Materiais metálicos não são os primeiros a vir em mente quando o assunto é arte, no entanto, eles se mostraram sempre presentes ao longo da história, desde O Pensador de Rodin (feito em bronze), até a própria Torre Eiffel (feita em ferro). Atualmente, o artesanato em metais tornou-se uma forma de reuso (não podendo ser confundido com reciclagem) de produtos do dia-dia, desde latinhas de alumínio e tampinhas de garrafa, até porcas e engrenagens. A beleza do artesanato no metal não vem apenas da reutilização de produtos que perderam sua função, mas também da abrangência de possibilidades que o material proporciona: devido à sua ductilidade, artesãos podem dobrar pedaços de alumínio e ferro para formar desde pequenas peças de latas de leite condensado, até esculturas maiores de diversos componentes industriais. Para peças simples, geralmente são utilizadas ferramentas simples, como martelos e tesouras, enquanto produções mais complexas exigem uma ferramentaria mais específica, como furadeiras e soldagem.

Finalmente, os materiais poliméricos também têm importantes contribuições na esfera do artesanato. Um dos exemplos mais comuns de artesanato com polímeros é o reuso de plásticos. As possibilidades para essa categoria de produção são muito extensas, visto que dependem quase que exclusivamente da criatividade do artesão. Entre os exemplares deste tipo de arte destacam-se vasos de planta, estojos feitos com garrafas PET decoradas e luminárias ornamentadas com tampinhas de garrafa.

Outra modalidade muito badalada no artesanato em polímeros é a das resinas, que existem em uma ampla variedade de tipos. Dentre as principais, destacam-se as epóxi, acrílicas e as de poliéster. A produção de uma obra em resina inicia-se na construção do molde, que pode ser de diversos materiais, dependendo da aplicação - os mais comuns são os moldes de silicone, gesso e madeira. Algumas peças possuem outros elementos na composição, como pedaços de madeira ou pedras, que são posicionados no interior do molde antes da aplicação da resina. Em alguns casos, o molde é “untado” - moldes de silicone, por exemplo, são revestidos em vaselina para facilitar o desenforme. Na sequência, a resina é despejada no molde, e espera-se o tempo de secagem para retirá-la. Algumas peças de resina não saem do processo de moldagem com um aspecto agradável e, para corrigir isso, o artesão as submete a um processo de lixamento seguido da aplicação de uma fina camada de resina epóxi ou verniz incolor para concluir o acabamento.

Para encerrar nossa reflexão, falaremos de uma modalidade de artesanato excepcional, que merece destaque por não se enquadrar em nenhuma das categorias discutidas anteriormente. Parte de uma cultura milenar, o Kinstugi (金継ぎ) é uma técnica japonesa e, também, um ótimo exemplo da intersecção entre ciência dos materiais e arte. A técnica se baseia na reparação de cerâmicas quebradas, em que são utilizadas resinas poliméricas para colar as peças e pó de ouro para decorar as regiões de rachaduras, de forma que as três esferas da engenharia de materiais são empregadas em um processo artesanal no qual, de maneira análoga às nossas vidas, os erros e acidentes compõem a obra. E, como resultado, tem-se a beleza dessa produção, que reside na criação de peças completamente únicas e irreplicáveis.


[Texto retirado da 20ª Edição do Jornal A Matéria, disponível em: bit.ly/EdicoesAMateria]