[18ª Edição] Uma Análise da Meritocracia em Tempos de Covid-19: Reflexões Sobre Ensino e Pesquisa Remotos

Texto 8 edição 18


Escrito por: Augusto da Veiga e Giovanni Rosalino

        Este texto surge de um novo distanciamento que, durante a pandemia da COVID-19, passou a existir entre professores/as e alunos/as ou entre orientadores/as e pesquisadores/as. A intenção aqui é, ao menos um pouco, demarcar este distanciamento, medir essa nova lacuna, com vista a entendermos melhor o que vem acontecendo, mas que não conseguimos muito bem identificar. Para isso, iremos apresentar uma breve reflexão a partir de relatos pessoais (anônimos) de alunos/as ou pesquisadores/as, a respeito de suas aulas e de suas pesquisas, com vista a levar em consideração conceitos como meritocracia, classismo, sexismo e racismo - ou seja, com o objetivo de identificarmos os novos sofrimentos e opressões e, a partir disso, propomos alternativas de uma pedagogia mais crítica ou de uma orientação mais atenciosa.

        Primeiramente, é interessante contextualizar os fatos. A partir da deflagração da pandemia, em 14 de março a UFSCar lançou uma portaria que suspendia as aulas por duas semanas, a qual foi prorrogada por tempo indeterminado tempos depois. Além das aulas, outras atividades presenciais de graduação também ficaram proibidas, como os estágios e as pesquisas. Atualmente, os estágios permitidos ainda são os remotos e apenas pós-graduandos/as podem ir ao laboratório, de acordo com as portarias da UFSCar*. Nesse sentido, vamos à discussão.

        “Cara, o meu orientador vem sendo bem atencioso, enviou o material que estava precisando, e vem se mostrando preocupado comigo…” disse Diego**, graduando do curso de Engenharia de Materiais, “mas não estou conseguindo ir no laboratório, e está tudo parado, né, cara, então não sei como vai ser…”. Bem, como é possível ver neste caso, a ansiedade de Diego foi diminuída pela maior atenção e presença do orientador (o que, relativamente, compensa o maior distanciamento físico da universidade e da pesquisa), no entanto, há preocupações que parecem que não tem como serem sanadas, “olha, eu ando estudando bastante, mas perdi totalmente o ritmo, e acho que isso reflete na falta de uma rotina, de um cronograma, em uma maior organização da pesquisa, dos grupos de pesquisa e do próprio EaD...” - aqui, EaD faz referência ao ensino remoto. Neste caso, a organização, o ritmo, a imposição coercitiva que é feita pela sala de aula, com seus horários e sua disciplina, parece não conseguir ser repetida em casa pelos alunos, não sabendo, por si só, organizar os seus estudos, pois, como diz Diego: “olha, está meio difícil criar ritmo…”. Segundo a escritora premiada e professora emérita bell hooks, as salas de aula impõem uma separação entre mente e corpo que faz os alunos não participarem delas com suas paixões, com seus sentimentos, de forma íntegra (com mente e corpo), estando eles somente “intelectualmente”, em um estado de ânimo neutro, equânime, que beira o tédio e o desinteresse.

        Não é estranho, por exemplo, que Diego diz que “Cara, na aula, quase ninguém liga a câmera, parece que as pessoas têm medo de se expor, que estão desconfortáveis, sei lá, é meio zoado…”. O medo de se expor que Diego ressalta é um medo que, antes, em sala de aula, já existia, quando os alunos se escondiam no meio de tantos outros, não colocavam a sua voz e o seu corpo em sala de aula e não se co-responsabilizam pelo conhecimento (sendo este de responsabilidade exclusiva do professor). No entanto, esse medo foi agravado, ganhou proporções maiores com a ansiedade, e parece estar tomando conta do ENPE (Ensino Não Presencial Emergencial), “olha, nas minhas aulas, realmente, quase ninguém participa, e eu só fico pensando na hora que vai acabar…”.

        A posição do professor atrás da escrivaninha, rígida, fixa, imutável, e a voz uníssona, plana, refletem um conhecimento igualmente rígido, impositivo, que não aceita questionamentos, outras tonalidades, outras vozes, e que é passado como se fosse uma transferência bancária, ou seja, de uma só vez para os alunos.

       A falta de uma pedagogia crítica, em que os alunos são responsáveis por manter o ânimo em sala de aula junto com o professor, em que todos têm que colocar os seus corpos e suas vozes (como em uma comunidade em que todos tem que dar a sua contribuição), em que os alunos podem aliar o que veem fora de sala de aula (sua experiência pessoal) com o que estão aprendendo (a teoria) e, por fim, em que os alunos podem relativamente controlar a sua nota conforme esforçam-se para participar mais ou menos da aula - faz com que o professor, nesse sistema de educação à distância, sintase ainda mais isolado, em um tipo de pedagogia que o deixa sozinho, como se fosse uma voz que não encontra eco para se sustentar.

        O professor visto como um ditador, alguém que não divide o seu poder de lidar com a aula, de se responsabilizar pelo conteúdo, parece ser o que leva os alunos a não participarem deste novo ensino a distância - como afirma Ana Rosa**, também aluna da graduação: “Eu não gosto de participar das aulas, porque tenho medo, vergonha, de não saber responder o que o professor quer… com o EaD, então, parece ainda pior…”.

       No entanto, Gerson**, diferente de Ana, discorda: “Olha, eu tenho um professor que dá uma de diferente, diz que vai sair para beber água e que, se ninguém ligar a câmera quando ele voltar, ele diz que vai encerrar a aula, porque todos são responsáveis pelo que aprendem, não só ele…”. Gerson, entre risos, ainda comenta: “O professor traz um ambiente divertido para a sala de aula, de vez em quando fala muito empolgado, comenta uma questão do dia dia, do noticiário, e parece que a turma não vira uma bagunça, mas sim que o gelo derrete, e todo mundo se sente mais à vontade”. A escritora bell hooks diz que uma sala de aula divertida pode ser também uma sala séria, que uma pedagogia crítica não é bagunça, e que o medo da desordem, no fim, é o medo do professor perder o seu controle, o seu poder sobre a sala de aula, “Sinceramente, eu acho que essa disciplina é o que está salvando o semestre, pois nas outras que participo, ninguém colabora, nem eu me sinto à vontade…”

        Ora, pelo relato de Gerson, mas também pelo de Ana Rosa, parece que as aulas remotas que são mais assertivas são aquelas que investem em uma pedagogia crítica, em que os alunos também se sentem responsáveis pelo ensino.

        É importante salientar que esta discussão tem outras nuances. Pois como afirma Diego, “Eu nem sempre posso participar das aulas, pois tem gente falando em casa às vezes, ou passando perto de mim”. No entanto, como afirma Ana Rosa, “apesar de a gente possuir limitações, eu até agora não vi nenhum professor em salas com mais de 20 alunos perguntando diretamente se alguém não consegue participar”, “para mim, parece que as pessoas podem participar sim, mas só que com breves interrupções, o que é bem aceitável”.

        Ora, o que parece é que os professores não se informam sobre quais são as condições materiais de toda a turma, como se quisessem continuar em uma posição confortável de transmitir a aula de uma única vez, sem questionamentos, sem contribuições. Isso leva a considerarmos uma presunção meritocrática por parte dos professores, que imaginam que todos os alunos têm a mesma condição e que a nota refletirá, no fim da disciplina, o esforço de cada um.

        Há uma imobilidade acentuada no ENPE que reforça desigualdades já antes existentes, e que deixa alunos como Ana Rosa, Diego e Gerson sem saber o que fazer, “Cara, eu na verdade assisto algumas aulas, mas nem penso em nada, só espero passar” (como disse Gerson).

        Vale, ainda, ressalvar que o conhecimento que não é questionado geralmente é o do homem branco e heterossexual, o que dá um status diferenciado para o professor e para o conhecimento, como diz Gerson “Uma coisa que eu fico pensando depois da aula é que as pessoas que participam geralmente são aquelas que não entraram pelas cotas, quem é branco, e geralmente aparecem mais as vozes dos homens do que das meninas, dessas aparecendo mais a imagem (...)”.

        Claro que o outro lado também é muito presente. Há diversos exemplos de professores/as que se adaptaram completamente para se adequar ao funcionamento do ENPE. É mais que óbvio que as aulas 100% expositivas - sejam síncronas ou assíncronas - não são as mais adequadas, tanto para quem ministra quanto para quem assiste. Com isso, há muitos/as professores/as que aprenderam novas formas de dar aula, novas plataformas, modificaram formas de avaliação, dentre outras mudanças que os tiram da zona de conforto - à qual já estavam acostumados há anos - e trazem aulas muito mais proveitosas. “É como disse minha orientadora, quem antes já se preocupava em dar aulas melhores e com metodologias diferentes agora está se esforçando ao máximo”, afirma Robson**, graduando do DEMa, e complementa: “É muito satisfatório quando você tem uma aula como essas, em que tem a discussão em grupos, com o professor, você se sente tratado como gente mesmo, e não acuado por alguém que se sente superior”.

        Ora, será que, como uma pedagogia crítica não é colocada em prática, resulta que uma supremacia branca e masculina se instala até nesse novo sistema de aula, mantendo os previlégios daqueles que já os detêm? Continuamos afirmando na educação a distância que as melhores oportunidades são para aqueles de classe mais alta, homens, brancos, que tem mais condições de participar das aulas e possuem mais prestígio para as suas opiniões serem ouvidas?

        Estamos levando um ensino para todos e todas?

        No caráter da pesquisa, a abordagem não é tão diferente. Há os pontos muito positivos dos/as orientadores/as, mas há outros que seguem para perpetuar a meritocracia, sem um pensamento crítico acerca disso.

        Assim como no primeiro relato de Diego, muito se vê casos em que orientadores/as procuraram manter o vínculo e, inclusive, ajudar com fatores que - supostamente - não seria função deles: “Minha orientadora, além das reuniões semanais, fez até sessões de meditação, tentou acalmar seus orientandos e sempre se manifestou presente e querendo ajudar”, relata Robson. É muito importante entender que aqueles/as que se preocupavam com a saúde mental e com o aprendizado dos/as estudantes mantiveram essa preocupação, quando não a aumentaram.

        Por outro lado, Márcia**, graduanda em EMa, nos traz: “Desde que era caloura, meu sonho era trabalhar naquele laboratório. Sempre fui com o maior esforço, cumpria 12 horas semanais, quando não mais, estando há 1 ano e meio sem bolsa e, às vezes, fazendo trabalhos que seriam para pós-doutorandos fazerem. Quando veio a pandemia, fui obrigada a trabalhar, porque tinha bolsa de uma empresa. E, mesmo quando tudo era para estar fechado e durante muitas semanas, eu fazia horário comercial, resultando em 40 horas, ganhando a mesma bolsa, enquanto meu orientador e minha coorientadora sequer iam. Ao tentar fazer um acordo com meu orientador para cumprir as 48 horas mensais em apenas uma semana para facilitar com moradia, transporte e diminuir meus riscos, eu fui simplesmente descartada, como um número”.

        Aqui, vemos o quanto aquele/a que tinha a função de auxiliar e orientar é capaz de não ter a empatia, desvalorizando todo o trabalho anterior que foi feito e não se importando com esse que não é nada menos. Ou seja, se ele/a tem bolsa FAPESP, se pode ficar em casa e continuar ganhando bolsa, se pode prorrogar o período da bolsa “é porque mereceu!”, como diz o meme. Será? “No final, ele me pediu desculpa e colocou um pós-doc no meu lugar”, diz Márcia.

        Nenhum dos integrantes/ escritores/as do Jornal é um/a estudioso/a da área social, muito menos fez um trabalho científico acerca do assunto, mas está mais que claro que a universidade é como um microcosmos da sociedade e claro que aqui o funcionamento se dá como na vida fora dela. Sendo assim, da mesma forma que questionamos se o ENPE está sendo totalmente inclusivo, agora lançamos a vocês que nos leem: realmente aqueles/as que têm bolsa são os/as mais inteligentes, esforçados/as e têm mais mérito do que os outros? Ou será que as bolsas - sobretudo as mais concorridas - são apenas mais uma forma de manter a engrenagem meritocrática com boa lubrificação?

        Com este texto, gostaríamos, muito menos do que apresentar um ponto de vista, que ficasse a reflexão sobre o funcionamento do ensino nos moldes atuais e, principalmente, que alimentasse uma discussão muito importante acerca do assunto. Quem se sentir confortável e quiser discutir, nós do Jornal A Matéria estamos super abertos/as, como sempre.

* Todas as portarias relacionadas às medidas tomadas pela UFSCar em relação à pandemia podem ser encontradas neste link: https:// www.covid19.ufscar.br/documentos -oficiais.

**Nomes fictícios.

Referências: HOOKS, Bell. "Ensinando a Transgredir: a educação como prática de liberdade.” 2° edição. São Paulo (2017).