[17ª Edição] “A história primitiva”: Engenharia de Materiais na UFSCar

“A história primitiva”: Engenharia de Materiais na UFSCar


Escrito por: Augusto da Veiga e Guilherme Koga.

        O objetivo do Jornal “A Matéria” neste ano comemorativo de 50 anos da Engenharia de Materiais é trazer uma série de textos que abordem um pouco o que nosso curso passou até chegar aonde chegou e o que se espera dos próximos anos. Com isso, iniciamos com “A história primitiva”, termo cunhado em 1995 pelo tão importante e participativo professor José Roberto Gonçalves da Silva.
        Talvez uma pergunta pela qual muitos leitores e leitoras já passaram é “O que é Engenharia de Materiais?”. Para começar a responder essa pergunta, talvez seja mais fácil responder o que é “Engenharia”. Pensando em algo que vai muito além da resolução de problemas, o professor José Roberto G. da Silva definiu de forma muito concisa o que, em 1993, o CONFEA adotou como definição: “Engenharia é a arte profissional de organizar e dirigir o trabalho do homem aplicando conhecimento científico e utilizando, com parcimônia, os materiais e as energias da natureza para produzir economicamente bens e serviços de interesse e necessidade da sociedade dentro de parâmetros de segurança.” Ou seja, é a ciência criando tecnologias a serviço da sociedade respeitando os recursos naturais.
        E isso pode ser extrapolado para qualquer outro âmbito, trazendo consigo o predicativo: Engenharia Civil, de Produção, de Alimentos, Química... de Materiais. E é nesta última que moram todos os nossos sonhos e pesadelos. A Engenharia de Materiais (EMa para os mais íntimos) traz consigo todas as preocupações de todos os outros engenheiros e engenheiras, uma vez que de nada adianta ter a tecnologia se o material que a constrói não for o mais adequado. Digamos, então, que somos a ponte entre a ciência e a engenharia. Sendo assim, é uma fascinante ciência muito facilmente aplicada no mundo real e, conhecendo as possibilidades de descobertas, é possível, literalmente, construir um novo mundo com novos materiais ou, mesmo, melhorando os que já existem.
        No Brasil, isso não foi diferente. Quando, em meados do final da década de 1960, o ilustre professor Sérgio Mascarenhas - com um grupo de professores - decidiu criar a Universidade Federal de São Carlos, trazendo o curso de Engenharia de Materiais, ele acabou por iniciar uma nova era no país. Não só por ter criado a vencedora de 36 TUSCas, mas também por ter trazido consigo o desenvolvimento de uma nova área, até então desconhecida.
        No ano de 1967, nos departamentos de Física e Ciência de Materiais e Metalurgia da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP) surgiu um ideal de fugir da física tradicional e dar sentido à ciência com aplicação social, devido à ascensão da microeletrônica e da tecnologia global. A partir daí, surgiu a Física do Estado Sólido, a qual foi seguida pela Física da Matéria Condensada e, a partir daqui, derivaram a Ciência dos Materiais e a Engenharia de Ciência dos Materiais.
        Este foi o nome dado a um dos dois primeiros cursos da Universidade Federal de São Carlos (o outro era Licenciatura em Ciências, hoje desativado), criada em 1969. Logo em seguida, houve represálias do Conselho Federal de Educação e das próprias pessoas, questionando a necessidade da criação de um curso diferente da Engenharia Metalúrgica já existente. Mesmo assim, o professor Sérgio Mascarenhas e seus colaboradores David Welch (Universidade de Princeton, EUA) e Richard Williams (Laboratório RCA, Radio Corporation of America) fizeram, em 1970, duas versões para o currículo pleno, intitulando o curso de “Engenharia de Ciência de Materiais”, o que incorporava uma dupla personalidade do profissional com conflito de competência entre Engenheiro e Cientista. A terceira versão do currículo é de 1971, com a assessoria de Marshal Merriam da Universidade da Califórnia (EUA) e de Rubens Ramalho da Universidade de Laval (Canadá), Jorge Sabato da Comissão Nacional de Energia Atômica da Argentina, e Franz Brotzen da Universidade Rice (EUA), base do currículo que se manteve por mais de 30 anos. Devido à ausência de outros cursos semelhantes no Brasil e na América Latina, na falta de comprovada adequação desses profissionais ao mercado de trabalho, e devido à ousadia da, até então, pequena universidade que se instalava (sem uma tradição estabelecida), o currículo pleno do curso da UFSCar só foi reconhecido pelo MEC em dezembro de 1975.
        As propostas iniciais da Engenharia de Materiais (agora já atualizada) tinham um caráter interdisciplinar e inovador, sem perder em profundidade - tanto que a primeira reformulação foi feita somente 35 anos depois. Deve-se destacar o papel do professor Vanderlei Sverzut, que organizou o pioneiro programa de estágios durante um semestre e em tempo integral para os graduandos do curso. Sverzut foi muito importante no processo de integração universidade–empresas, que permitiu garantir a empregabilidade e o prestígio dessa engenharia nova no Brasil. Os estágios abriram inúmeras oportunidades de emprego aos jovens estudantes de Engenharia de Materiais e contribuíram para difundir ainda mais o curso junto às empresas. Uma vez contratados, estes ex-alunos continuaram seus contatos com o DEMa e, em muitos casos, demandaram da UFSCar serviços especializados. Com as primeiras turmas formadas, coube aos próprios profissionais explicarem as funções de um profissional generalista e interdisciplinar na indústria e bater o pé afirmando que não era uma formação de administradores de almoxarifado.
        A UFSCar inovou experimentando uma estrutura curricular própria com as seguintes características: 1) formar engenheiros plenos e não cientistas, dirigidos à realidade nacional do mercado de trabalho para servirem de agentes catalisadores de novas tecnologias; 2) forte base científica; 3) ênfase à interdisciplinaridade própria da área; 4) versatilidade de opções por modalidade(s) e por disciplinas optativas de modo que o aluno moldasse sua própria formação; 5) treinamento prático com aulas experimentais de oficina e de laboratórios e em projetos industriais; incorporação do estágio industrial semestral curricular obrigatório através do PIEEG.
Antes da instalação do curso propriamente dita, era necessário, também, um espaço físico adequado. Para isso, houve a doação de 180 alqueires da Fazenda Trancham e, com a ajuda de políticos, a compra de outros 180 para que a universidade tivesse espaço para crescimento e fosse uma “universidade para mais de 100 anos”, como desejava Prof. Mascarenhas. Foram necessários muitos anos de dedicação e exaustivos trabalhos, de toda comunidade acadêmica, para transformar uma linda fazenda numa das melhores universidades do país.
        A implantação do curso de Engenharia de Materiais encontrou bastante oposição no Brasil, principalmente entre acadêmicos da Engenharia Metalúrgica e da Química, que não compartilhavam a necessidade do curso. Houve mesmo denúncias junto ao Conselho Federal de Educação, com a instauração de inquérito, por considerar-se que “era precipitado criar no Brasil um curso de engenharia na área de Materiais, e que deveria ser mais um dos vários cursos de Engenharia Metalúrgica existentes”. Vencendo oposição, denúncias e obstáculos, em 1970 o curso de Engenharia de Materiais foi criado e o vestibular foi mais uma das dificuldades. Como a seleção de todos os outros vestibulares já havia terminado, o desafio era selecionar os “melhores” (segundo ideais da época) do ano seguinte, para que o curso tivesse uma base forte. Então, montou-se um vestibular fora dos estereótipos - inclusive com respostas na própria prova -, o qual estimulava o raciocínior. Com isso, preencheu-se as 80 vagas com pessoas de liderança e pensamento crítico, as quais questionavam muito, inclusive a própria EMa.
        Em 1972 criou-se o Departamento e, junto a ele, mais empecilhos. Havia uma dificuldade no ensino da própria Engenharia de Materiais e muitos professores ensinaram a disciplina pela primeira vez, inclusive eram questionados pelos alunos. A solução foi trazer alguns professores estrangeiros que conseguissem traduzir a linguagem de matérias complicadas, como Reologia, Termodinâmica dos Sólidos e Ciência dos Materiais para futuros engenheiros. Claro, com tudo isso, houve um crescimento em conjunto de alunos e professores.
        Em 1978 foi criado o curso de mestrado em EMa, um ano depois a Universidade Federal da Paraíba criou o segundo curso da América Latina e, mais tarde, em 1987, o DEMa instalou o curso de doutorado em Ciência e Engenharia de Materiais. Esse sucesso, segundo o Prof. Mascarenhas, foi possível por conta de alguns fatores em conjunto: foi respeitado o Triângulo de Sábato (Empresa, Universidade e Governo, o qual pode ser relacionado ao tetraedro da EMa); foi feito um trabalho artesanal, além das publicações; o trabalho tinha um caráter inovativo e todos que participaram do início da EMa seguiram o caminho mesmo sem saber aonde chegariam.
        A duradoura excelência do curso de Engenharia de Materiais é comprovada pelas cinco estrelas do guia dos estudantes e nota máxima da CAPES para a avaliação de nosso Programa de Pós-Graduação em Ciência e Engenharia de Materiais (PPGCEM). Ademais, somos pioneiros em muitos aspectos relativos à EMa, ao criar os primeiros projetos de extensão: Centro Acadêmico, em 1994 (CAMa), Empresa Júnior (Materiais Jr), rede de alumnis (DEMaEx) e jornal (Jornal “A Matéria”). Também possuímos uma extensa rede internacional que permite que nossos alunos tenham a oportunidade de obter duplo-diploma em uma Grande École na França, além da possibilidade de realizar intercâmbios financiados de iniciação científica no Canadá, Estados Unidos, Alemanha, França, etc. Importante ressaltar que a maior conquista é já ter formado mais de 1300 mestres e doutores e mais de 2100 engenheiros ao longo desses 50 anos de existência.

[Texto retirado de nossa 17ª Edição, disponível em: bit.ly/EdicoesAMateria]